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GESTOS QUE VALEM MIL PALAVRAS
Gestos que valem mil palavras
2013-03-14
Gestos que valem mil palavras

Paula Teixeira nasceu em 1976, em Lisboa. Queria ser astronauta, mas acabou por ser com os pés bem assentes na terra que conquistou um novo espaço para os seus sonhos. Desde cedo fascinada com a diferença, tornou-se a única portuguesa a cantar em língua gestual. “Se ainda a sou, tenho pena”, lamenta, pois parece-lhe tão fácil quebrar barreiras e aproximar mundos. À música e às palavras junta gestos e emoções, e promove experiências verdadeiramente inclusivas. Dos concertos e álbuns passou para as escolas e agora aventura-se nos livros. O objectivo é chegar com a sua mensagem a cada vez mais pessoas. A muitas crianças, mas também a adultos que, unidos pela curiosidade, aprendem a comunicar com o outro, afinal, apenas diferente. Não eram estes os planos que tinha: “Aconteceu e estou muito feliz que a minha vida tenha acontecido assim. Sou uma privilegiada.” A dias de ser mãe pela primeira vez, a cantora e intérprete Paula Teixeira falou com a RECICLA e partilhou com entusiasmo as principais etapas do seu percurso.

 

A sua ligação à música começou muito cedo.

Sim, lembro-me desde sempre de fazer espectáculos em casa para os meus pais, onde dançava e cantava. Tínhamos um cinzeiro de pé alto, que era o meu microfone.

 

Tinha familiares ligados a essa área?

Não, apenas gostavam muito de música. A minha mãe tinha o sonho de ser cantora e o meu pai também cantava muito bem. Aceitaram desde logo a minha ligação às artes, porque perceberam que era onde me sentia feliz. Foi muito importante o facto de nunca me terem censurado ou limitado as minhas escolhas.

 

Aos 12 anos estreou-se num palco a sério.

Pois foi, no Teatro Maria Matos, em Lisboa, num palco em grande, por uma causa ainda maior: a APADP, Associação de Pais e Amigos de Deficientes Profundos. Era uma gala

de angariação de fundos e como havia poucas pessoas para cantar, lá fui eu. Na altura sei que cantava muito mal, mas queria dar o meu melhor. Escolhi uma música com uma letra fabulosa (risos): “Minha juventude passou, já sou velha isso eu sei…” (risos). Só muitos anos depois é que consciencializei o que tinha cantado…

 

A música surgiu, assim, ligada a uma causa humanitária. Curiosamente, ao longo do seu percurso, esta relação entre as duas áreas é uma constante.

Nada acontece por acaso e o facto de me ter estreado nessa gala da APADP e de estar desde tão cedo em contacto com a deficiência acabou por influenciar toda a minha vida, quer a nível profissional, quer a nível pessoal. Passados 22 anos, ainda sou madrinha da APADP e continuo profundamente ligada a eles e a todas as histórias de vida extraordinárias que tenho tido o privilégio de acompanhar desde o início.

 

Como se proporcionou o seu contacto tão precoce com essa associação?

Um amigo do meu pai tem um filho na APADP e, por isso, comecei desde muito cedo a visitar a instituição. Ao contactar com aquelas crianças com deficiência profunda percebi que era uma área na qual teria muito para dar. Por isso optei pelo curso de educadora de infância e a minha intenção era especializar-me no apoio a crianças

com necessidade especiais.

 

Nessa altura, deixou a música para trás?

Não, a música esteve sempre presente. Aos 16 anos formei a minha primeira banda de garagem, os Sankara, que era o nome da pedra do Indiana Jones (risos), e durante 16 anos cantei em bares e participei em todos os concursos de música que podia.

 

Ficou inclusivamente em segundo lugar no conhecido Chuva de Estrelas

É verdade! Foi com a canção Reach, da Gloria Estefan, numa final dramática, pois na gala fiquei sem voz e entrei em pânico. Um médico teve que me dar uma injecção de cortisona e só assim consegui cantar.

 

Paralelamente a essas experiências, como surge a língua gestual na sua vida?

Completamente por acaso. Um dia uma colega contou-me que tinha uma amiga que estava a estudar língua gestual. Achei curioso e lembro-me de, nessa mesma tarde, passar por um grupo de jovens surdos e de, pela primeira vez, olhar para aquele tipo de comunicação com olhos de ver. Achei fantástico, parecia uma espécie de dança. Como não acredito em coincidências e como sou de impulsos, procurei logo uma cabine telefónica e liguei para a Associação Portuguesa de Surdos para saber como poderia aprender língua gestual.

 

Foi difícil aprender?

Foi muito difícil. Várias vezes estive quase a desistir. Achava que era tão complicado que não ia conseguir. Ainda por cima não tinha ninguém na família com quem praticar diariamente, o que é essencial. Mas tive a sorte de ter um professor maravilhoso – por sinal, surdo – que não me deixou desistir. E ainda bem.

 

As pessoas não a questionavam porque queria aprender língua gestual?

Sim, achavam muito estranho, sobretudo porque era uma ouvinte sem familiares surdos. Nessa altura, em 1997, muito poucas pessoas aprendiam. Quando comecei, apaixonei-me. É fantástico alguém poder ser a ponte de comunicação entre dois mundos. Costumo dizer que a língua gestual é uma língua mágica.

 

O curso de intérprete de língua gestual coincidiu com a sua participação no Chuva de Estrelas.

E foi graças a essa participação que comecei a cantar em língua gestual. Depois dos programas, quando chegava às aulas, os meus colegas surdos perguntavam-me: “O que é que cantaste?”, “O que dizias?”, “Explica-nos o que estavas a cantar”. A música acabou por nos aproximar e foram eles que tiveram a ideia de eu começar a cantar em língua gestual.

 

Quando é que a ideia passou à acção?

Passado pouco tempo convidaram-me para cantar numa festa de surdos. Achei tão estranho. De repente estou num palco em que a plateia é surda. E agora? Cantei então, pela primeira vez, o Reach à minha maneira. Tentei traduzir por gestos o que me vinha à alma, ao coração e comecei a perceber que eles estavam a sentir o que eu estava a cantar. Foi uma revolução na minha vida. Prometi a mim mesma continuar, fazer a minha música sem limites, sem barreiras. O meu primeiro álbum chama-se mesmo Promessa.

 

O que sente quando está a cantar para uma plateia tão especial?

É um privilégio poder transmitir o que estou a cantar com a minha expressão corporal, com os meus gestos. E é único sentir que pessoas que não fazem ideia se sou afinada ou se tenho um timbre bonito percebem e sentem a minha música. No meu último concerto, uma amiga que nunca ouviu um som na vida virou-se para mim e disse: “Paula, estás a cantar muito melhor”. Para eles, cantar é transmitir emoções com todo o corpo, por isso o que ela sentiu foi que estou a amadurecer, a criar mais, a conseguir dar

mais de mim, a chegar cada vez mais longe e isso é maravilhoso.

 

O que faz nos seus concertos não é uma tradução literal das letras, pois não?

Não, não. Costumo dizer que é mais uma poesia gestual. É a tradução do que estou a sentir com aquela letra e música. Como sou muito transparente, acho que tenho facilidade em passar as mensagens e os sentimentos.

 

Ao perceber o carácter universal da música e o seu poder inclusivo voltou-se novamente para as crianças. Porquê?

Sendo cantora e intérprete de língua gestual senti que devia fazer mais alguma coisa. Resolvi juntar os meus dois mundos e construir o projecto Som e Silêncio. É um espectáculo lúdico-pedagógico que pretende sensibilizar os mais pequenos para a diferença. Explico-lhes, de maneira muito natural, que existem crianças como elas, mas que são surdas e comunicam de forma diferente e desafio-as a aprender a língua gestual.

Adoram saber o abecedário, o nome dos animais, das cores, como se diz “gosto de ti” ou “queres ser meu amigo?”. No fim das sessões todos querem ter um amigo surdo! Com as crianças, tento lançar uma semente, pois sei que fica lá. A perspectiva daquelas crianças, no futuro, não encararem alguém surdo com estranheza é, para mim, o maior prémio.

 

No final de 2012, lançou o primeiro livro da colecção Mãos de Encantar. Como apresentaria este novo projecto?

Esta colecção é uma forma de chegar a ainda mais crianças e é um projeto em que posso dar asas a tudo o que sou. Este primeiro livro, O Som das Cores, é 100% Paula Teixeira. Todas as crianças, mesmo todas, independentemente de serem cegas, surdas ou terem deficiências motoras conseguem perceber a história. Inclui braille, língua gestual, música, um filme… É algo completamente inclusivo. Agora temos um mundo infindável de temas a explorar e a minha cabeça já está cheia de ideias para chegar a cada vez mais crianças.

 

A Paula é uma mulher de palavras, gestos, mas de muitas acções. Concorda?

Fala-se muito de diferença e inclusão, mas acho que ainda se faz muito pouco. Eu sou pessoa de estar no terreno, de espicaçar consciências, de mexer na ferida. O meu trabalho é uma luta constante pela inclusão na prática. Essa sempre foi a grande motivação da minha vida e foi o princípio de tudo. As experiências iniciais marcam muito a vida das pessoas. Eu senti a diferença na pele e isso mudou-me para sempre.

 

Prestes a ter a sua primeira filha, espera nela uma seguidora das suas convicções?

Vai chamar-se Noa, que significa “aquela que deixa marca no mundo”. Gostava muito que a sua marca estivesse ligada à defesa da igualdade. Vou logo dar-lhe a conhecer, muito pequenina, imensas crianças fantásticas e espero que assim não vá sentir estranheza pela diferença.

 

Entre o som e o silêncio, há algum som que aprecie especialmente? E um lugar que costuma escolher para estar em silêncio?

Os sons que mais aprecio são o som do mar e o do pisar das folhas. Mesmo à frente da minha casa, tenho o privilégio de ter um espaço de campo enorme, um refúgio onde me sinto livre e estou comigo própria, em silêncio.

 

Irremediavelmente optimista, costuma assumir como filosofia de vida: “O melhor ainda está para vir”. Estas palavras continuam a fazer-lhe sentido?

Cada vez mais. Acredito tanto nisso! Está mesmo gravado em mim.

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