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ACTIVISTA DA IGUALDADE
Activista da igualdade
2013-11-26
Activista da igualdade

A solidariedade é um raio que nos atinge sem esperarmos e que nos modifica. Que o diga Catarina Furtado, apresentadora de televisão, Embaixadora da Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População e Presidente da Associação Corações com Coroa, cujo objectivo é sensibilizar para as questões da igualdade e ajudar o Fundo das Nações Unidas para a População a fazer o seu trabalho na área da Saúde Materna e Infantil. Nas suas viagens em reportagem pelo mundo viu no terreno a realidade dura de meninas, jovens e mulheres em situação de vulnerabilidade. Isso aguçou ainda mais a sua tremenda paixão pelo mundo social e fixou-lhe uma missão de vida: implementar mudanças que contagiem outros, num processo em cascata


Ela é uma inconformada num país revoltado e sem energia. Tem a esperança no seu ADN, e o sonho e a determinação e o optimismo. Para ela, a luta faz-se nos ringues, no campo de batalha. É aí que o seu exemplo pode ser inspirador.


Nos últimos anos já se envolveu em inúmeros projectos e pelo caminho aprendeu o que são maratonas de trabalho, capazes de moer os ossos e a mente dos mais resistentes. “O meu sonho pessoal é criar impacto positivo na vida das pessoas e fazer a diferença”, diz Catarina Fustado. Para que isso aconteça, quer tornar a Corações Com Coroa numa referência, gerida com profissionalismo, verdade, carisma, paixão e credibilidade. A sua principal área de trabalho é a igualdade de oportunidades. Entre vários outros projectos, e com apenas um ano de existência, a Corações Com Coroa já iniciou o atendimento gratuito com uma psicóloga a mulheres que precisem de ajuda, está prestes a iniciar as consultas de aconselhamento familiar e jurídico, acessível a todos, e prepara-se para atribuir as primeiras bolsas de estudo a adolescentes excepcionais mas com dificuldades financeiras. “O impacto que isto tem em mim é inexplicável. Não há nada mais comovente do que ver pessoas que querem aprender e não podem. O que fazemos não é apenas dar dinheiro para que possam estudar. É dar acompanhamento e sustento psicológico. Isto é fazer a diferença. Isto é criar uma sociedade mais equilibrada”.


A sua equipa de 4 pessoas, todas mulheres, é uma espécie de irmandade fundada no céu e na crença de que, como diz Catarina, este é o caminho certo para intervir. “Pode parecer apenas uma gota de água no deserto das necessidades humanas, mas pelo menos não me sinto impotente”. Ela luta contra a burocracia, a inércia das instituições, a falta de recursos, a irremediável desigualdade de oportunidades. Na verdade ela luta, acima de tudo, contra o tempo. Aquele de que dispõe não lhe permite concretizar todos os projectos que tem em mãos.


Nos países em vias de desenvolvimento há 600 milhões raparigas à espera de uma oportunidade para provar que são capazes de mudar não só o seu destino, como mudar o mundo. Investir nelas é investir na sua família, na sua comunidade e no seu país. Alertar para estas questões é uma das missões de Catarina Furtado. E quando regressa das suas viagens ao terreno, a países como a Índia, Sudão do Sul ou São Tomé e Príncipe, sente-se invencível e grata pela tremenda abundância que existe na sua vida: amor, família, trabalho, saúde, uma grande alegria.

 

Na área social, qual a sua principal missão?
Lutar para que exista um compromisso sério para com a igualdade de género e a saúde sexual e reprodutiva das famílias, das mulheres, dos jovens e sobretudo das raparigas. Salvar vidas e promover a igualdade é o caminho inteligente para a mudança social que é o fim da pobreza. Os casamentos forçados e precoces, a violência doméstica, a morte por razões de gravidez e parto, as mutilações genitais femininas, a gravidez adolescente e a discriminação de género são algumas das cifras que gostaria de ver diminuídas nos próximos anos. Para isso precisamos de recursos, mas também de vontade e liderança política, da sociedade civil e das parcerias com os sectores privado e filantrópico, precisamos sobretudo de tornar efectivos os direitos humanos nas agendas de política externa… Eu estou disponível para esta missão e causa e gostava que muitos mais se juntassem, para que se possam colocar as meninas e mulheres em primeiro lugar.

 

Porque é que investir nas adolescentes é a forma mais eficaz de melhorar o mundo?
Acredito que as mudanças económicas e sociais de que o mundo tanto precisa podem acontecer se as raparigas tiverem a oportunidade de participar. No terreno, salvar uma mulher é salvar uma família, uma comunidade e um país. Está provado: as mulheres reinvestem o dinheiro e o conhecimento na sua família e na sua comunidade. Prioridades de intervenção é a educação, o primeiro passo para a independência em todos os sentidos; a protecção, porque há demasiadas mulheres escravizadas pelo mundo; e a saúde, sem as quais as coisas anteriores de pouco servem. Além do controlo da natalidade. Não tenho dúvidas: investir nas adolescentes quebrará o ciclo inter-geracional da pobreza.

 

Milhões de jovens mulheres em todo o mundo correm riscos vários: uma em cada sete casam-se antes dos 15 anos; não frequentam a escola, são mães antes dos 18 anos ou contraiem o vírus HIV/sida em número muito superior ao dos homens. Mas quando são apoiadas estas mesmas jovens mulheres efectuam notáveis mudanças sociais e económicas. Porquê?

As mulheres reinvestem na sua família tudo o que ganham. Mas esta realidade é ignorada no mundo da filantropia. As raparigas são potenciais agentes de mudança económico-social. Por exemplo, quando recebem mais formação conseguem quebrar todo um círculo intergeracional de pobreza. Segundo o Banco Mundial, por cada ano escolar extra uma jovem pode ver o seu salário crescer entre 10% a 20%. Em paralelo, terá melhores condições para cuidar dos filhos. Mais: as mulheres são uma força económica por explorar. Excluí-las do mercado de trabalho implica expressivas perdas para o PIB de qualquer país.

 

Contra factos não há argumentos. É por isso que o mundo começou a compreender que a marginalização do sexo feminino acarreta custos económicos e sociais elevados não só para as mulheres, mas também para quem com elas vive?

Sim. Hoje a participação de mulheres nos processos de decisão é internacionalmente considerada como um requisito de democracia e de desenvolvimento. Tanto que o seu ‘empoderamento’ constitui um dos oito objectivos do milénio propostos pela ONU. Apesar de toda a atenção de que têm sido alvo, as mulheres que nascem nos países em vias de desenvolvimento continuam, na sua maioria, a viver uma realidade pouco cor-de-rosa. Têm maiores probabilidades de abandonar os estudos. Milhares não possuem bilhete de identidade. Milhões, sobretudo na Ásia, nem têm a oportunidade de nascer. São o elo mais fraco da sociedade. Em Moçambique, por exemplo, o dia-a-dia de grande parte das mulheres desdobra-se em tarefas tão morosas como cozinhar, tratar da horta, apanhar lenha ou ir buscar água potável, muitas vezes a três ou quatro horas de caminho, a pé, das aldeias onde vivem. Consequentemente não estão disponíveis para frequentar acções de formação e assim garantir fontes de rendimento alternativas. É preciso agir. Acredito que quando as mentalidades acompanharem a evolução da lei, haverá garantia da paridade entre géneros. Levará o seu tempo.


Em Portugal a Constituição consagra desde 1976 a igualdade de direitos entre ambos os sexos. No entanto, permanece a necessidade de combater os estereótipos. Concorda?


Sim. Há ainda muitos estereótipos, mesmo em Portugal. É crucial a necessidade de conferir maior autonomia às raparigas. Só através da educação, formação e adopção de acções positivas é que as mulheres aprenderão a olhar para si mesmas como potenciais líderes e a integrar essa dimensão, tal como os homens, nos seus projectos de vida.

 

Outro facto assustador: em Portugal são também as mulheres que dominam as taxas de pobreza.


Em relação à população total, as mulheres são mais atingidas pela pobreza monetária tanto em termos de incidência como de intensidade e severidade. Mas a situação tem melhorado devido à maior participação das mulheres no mercado de trabalho. E esta é, em parte, proporcionada pela crescente escolarização. Afinal elas já correspondem a 60% da população universitária, e terminam os cursos com melhor aproveitamento e em menos tempo. Tudo é uma questão de proporção. Temos de dar tempo às jovens que estão a sair das universidades. São elas que estão e continuarão a transformar a sociedade. Espera-se que ocupem lugares de topo nas empresas e participem de forma mais activa na esfera política e social do país.

 

Como decidiu criar a Corações Com Coroa?

A vontade estava lá, mas foram os meus amigos que me empurraram para a acção. Isto permite-se agir também localmente, no meu país. Devido ao meu trabalho nas Nações Unidas e aos documentários “Príncipes do Nada”, já testemunhei in loco realidades terríveis, mais do eu muitos políticos que têm poder de mudança. Sempre contactei com as questões da diferença, faço voluntariado desde os nove anos, mas quando fui convidada para ser Embaixadora da Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População abriu-se-me um mundo inteiro de oportunidades. Tive uma grande necessidade de ir ao terreno ver com os meus próprios olhos o que lia nos documentos…


E que impacto isto tem a sua vida e na sua família?

Um impacto enorme. Sou muito obsessiva, vivo tudo intensamente. Os meus filhos e o meu marido sentem isso. Quando venho das minhas viagens, sinto-me irrascível… A nível pessoal parece que tenho uma nova vida. Estou há 21 anos a fazer televisão, teatro, representação, e de repente estou numa área totalmente diferente, sem a luz da ribalta, e isso é extraordinário. Receio que qualquer dia só esta área de trabalho faça sentido para mim… Entrevistei meninas de dez anos casadas, o que é uma violação dos direitos humanos sem escala, e claro que situações destas me impelem à acção…

 

Não perde a capacidade de se indignar?


A indignação é das armas mais poderosas que podemos usar. Quando ouvimos a jovem paquistanesa Malala Yousafzai, que se tornou um símbolo da resistência contra os taliban após sobreviver a um ataque em Outubro do ano passado, quando foi baleada na cabeça no regresso da escola, percebemos que da sua indignação saíram milhares de vozes para esta causa.

 

Do ponto de vista ambiental, qual a sua maior preocupação?


A água e o luxo que é podermos usufruir dela nos países ocidentais e a consciência de que ela um dia finda. No Sudão do Sul, onde estive em reportagem, não tomava banho. Não havia como. Em países como Timor, São Tomé, Cabo Verde ou Índia via mulheres, sempre elas, a transportar a água durante quilómetros, horas a fio, para a sobrevivência mínima.

 

Está optimista?

Sim. É um privilégio estar viva.

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