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QUEM TEM MEDO DE LUÍSA SCHMIDT?
 Quem tem medo de Luísa Schmidt?
2010-11-01
Quem tem medo de Luísa Schmidt?

A socióloga Luísa Schmidt é a voz mais acutilante do país no que toca à defesa do ambiente. Ela é a prova de que é possível fazer a diferença e construir um futuro sustentável.  

Sem papas na língua, e com a força de argumentos irrepreensíveis, a socióloga Luísa Schmidt bate-se há mais de 20 anos por causas sociais e ambientais. “Para aumentar a consciência as pessoas precisam da verdade. Essa é a minha luta de sempre”, declarou numa entrevista à revista Gingko. Para tal, desdobra-se em palcos de batalha. Ela mantém há duas décadas uma coluna de opinião no semanário Expresso, é membro do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável (CNADS), fundou o OBSERVA (observatório de ambiente, sociedade e opinião pública), realizou documentários para a televisão e publicou vários livros, entre eles País (In)Sustentável – Ambiente e Qualidade de Vida em Portugal . O país agradece.

  

 

O que significa para si ter recebido em Novembro passado o Prémio Quercus, que distingue entidades, empresas ou cidadãos que se tenham evidenciado na defesa do ambiente ou do desenvolvimento sustentável?

É uma grande honra e um estímulo para continuar. Tanto mais que coincidiu com as comemorações dos 25 anos da Quercus, e que o partilhei com o Carlos Pimenta, que teve uma acção absolutamente crucial neste país durante o pouco tempo em que esteve no Governo. Ele mostrou que é possível agir de forma diferente e colocar o Ambiente no centro da acção política como tema mobilizador. A Quercus, através da sua capacidade pedagógica e de intervenção, também conseguiu pôr na agenda e projectar os problemas ambientais de maneira ímpar. E é difícil ser ambientalista neste país. Os cidadãos, os políticos e as empresas confundem a defesa do bem comum com ataque pessoal. Lá fora é diferente. Por exemplo, na Holanda mais de 50% da população pertence a uma organização não governamental de ambiente.

 

 

Vários artigos descrevem-na como sendo “destemida”. É este o adjectivo que melhor a caracteriza?

Julgo que não. Nesta área afrontamos o poder político e o económico. Em Portugal não há tradição de escrever livremente e com independência. Claro que, como toda a gente, tenho medo – não sou inconsciente ou irresponsável. Mas nunca tive processos em tribunais porque fundamento muito bem tudo o que escrevo. A auto-exigência na escrita deve ser muito grande para não afectar imerecidamente as pessoas. Devemos perseguir causas, não indivíduos.

 

Já sofreu pressões antes ou depois de publicar um artigo?

O Expresso sempre me deu grande margem de liberdade. Pode ter havido um ou dois episódios (com pessoas que já não estão lá) por determinado artigo estar muito forte, mas foram publicados sem alterações. Agora, não podemos ser ingénuos e pensar que quem trabalha num jornal não sofre pressões. A questão é: se não tivermos uma arma apontada à cabeça, escrevemos. Se estivermos a ser ameaçados temos De denunciar a pressão. O que já aconteceu foi que certas pessoas, principalmente responsáveis políticos, deixaram de falar comigo.

 

O que a levou a escolher o curso de sociologia?

Quando entrei para a faculdade, em 1974, não havia o curso de Sociologia. Não era um tema “acarinhado” (para usar uma palavra soft) pelo regime ditatorial. Por isso fui para Economia, que era o que mais se aproximava da sociologia. A maneira como o Homem funciona colectivamente sempre me interessou. E sempre me preocupou a questão das injustiças sociais. Quando surgiu o curso de Ciências Sociais e Humanas na Universidade Nova, em 1976, aproveitei a oportunidade e inscrevi-me. A abordagem que Vitorino Magalhães Godinho fazia à sociologia era muito interessante e interdisciplinar, pois incluía um conjunto de ciências sociais – Sociologia, História, Economia, Direito, Psicologia – fundamentais para perceber a sociedade.

 

 Como surgiu o seu interesse pelos temas ambientais?

Foi muito mais tarde. Fiz o curso, estive no estrangeiro, voltei e fiquei como tarefeira do Instituto de Ciências Sociais. Participei em vários estudos e depois comecei a interessar-me pelo tema do consumo. O país só entrou numa economia de mercado nos anos 80 e, na altura, houve grande euforia com produtos a chegarem de todo o lado, sem controlo. Fiz a tese de mestrado sobre a maneira como os jovens aderiram ao consumo. Interessei-me pela defesa do consumidor e escrevi sobre o assunto numa crónica que iniciei no jornal Expresso em 1986. O ambiente era o reverso da sociedade de consumo. De repente, surgiram em Portugal problemas ambientais de forma muito evidente. Os fundos europeus originaram enorme boom na construção de estradas e noutras infra-estruturas. Mas não houve respeito pelo ambiente. A adesão à CEE trouxe legislação ambiental, Carlos Pimenta criou a Lei de Base do Ambiente, mas existia um gap entre a lei e a sua aplicação. A falta de fiscalização e ausência de políticas de ordenamento do território levaram ao aparecimento de externalidades ambientais. As fábricas e as habitações que surgiram um pouco por todo o lado poluíram rios e originaram lixeiras. Foi então que me interessei pela Sociologia do Ambiente. Em 1990 a minha crónica passou a chamar-se “Qualidade Devida”. Numa semana abordava problemas do consumo e na seguinte questões ambientais.

 

Segundo um estudo do OBSERVA, os portugueses são dos europeus menos informados em questões ambientais. Porquê?

Uma das razões é a iliteracia que, nos vários contextos, é superior em Portugal quando comparada com outros países europeus. Durante o regime ditatorial não se investiu seriamente na educação – aliás, ainda não se investe. Outra é o modelo de crescimento. Fomos uma sociedade ruralista até muito tarde. Nos anos 60 a industrialização já ocorrera nos outros países, e eles já lidavam com problemas ambientais. No final dos anos 70 40% da população ainda trabalhava na agricultura. Os grandes pólos industriais apenas surgiram nos anos oitenta, e é nessa altura que surgem os problemas ambientais de forma mais evidente, nomeadamente aquele que mais preocupa a população, que é a qualidade da água. Mas não havia uma classe média forte e com sensibilidade ambiental que se fizesse ouvir. Os governos democráticos também não investiram na divulgação do património natural e nas vantagens de habitar numa área protegida. A política restritiva nestas áreas e a injustiça que criou a quem lá vive resultou em animosidade contra a gestão ambiental.

 

Nos anos 90 os partidos ecologistas cresceram na Europa, mas não em Portugal. Por outro lado, os cientistas também não comunicavam as conclusões dos seus estudos. Estes factores também contribuíram para a falta de informação dos portugueses?

Sim, é verdade. As universidades cresceram em torres de marfim e durante muitos anos os cientistas não partilharam o saber com a população. Hoje as universidades têm de divulgar os resultados das suas investigações à população. A questão do partido político é grave e tem enorme importância na falta de visibilidade do Ambiente. O partido ecologista Os Verdes é um equívoco. Foi fundado em 1982, no mesmo ano do partido ecologista alemão, só que é um anexo do Partido Comunista. A imagem de Partido Melancia – verde por fora e vermelho por dentro – é fatal. A sua existência hipotecou a possibilidade de, nos anos 90, nascer um verdadeiro partido ecologista, forte, independente, capaz de mobilizar a juventude e pessoas de origens políticas diferentes.

 

Que estudo do OBSERVA teve mais impacto nos governantes e na opinião pública?

Os inquéritos à população foram muito interessantes porque mostraram a falta de conhecimento sobre matérias ambientais. Mas também revelaram o desejo de saber e simpatia por estas questões, e mostraram os principais problemas que as pessoas identificavam: poluição dos rios e incêndios (o que é sintomático da tradição ruralista). A opinião pública tem noção muito clara da afectação e da injustiça ambiental. Por isso é que o ambiente é mobilizador em termos sociais. Um político que perceba isto terá visibilidade. José Sócrates começou a existir politicamente quando assumiu o cargo de ministro do Ambiente. Ele usou as questões ambientais para se projectar quando encerrou lixeiras e se opôs a dois ou três projectos ambientais. Achámos que o interesse dele pelo ambiente podia ser genuíno, mas quando chegou a Primeiro-Ministro não lhe pegou – pelo contrário. Os políticos e os media não percebem quão preocupadas as pessoas estão com o ambiente.

 

Qual é a principal causa de insustentabilidade no país?

A falta de ordenamento do território é crucial porque está associada à metropolitização e à rodoviarização. Esta tríade resulta da maneira como deixámos crescer as duas grandes cidades e levou a que ficássemos dependentes do automóvel para nos deslocarmos. As contas estão feitas: o tempo e a energia gasta nas filas de trânsito equivalem a 2% do PIB. Houve enorme desequilíbrio entre o que se investiu em estradas e o que se investiu no tecido ferroviário. O país não será eficiente, nem do ponto de vista energético nem laboral, enquanto não tiver uma rede de transportes eficaz nas áreas urbanas. E actualmente há uma mancha urbana mal organizada e cheia de problemas que se estende de Braga até Setúbal.

 

Nos artigos que escreve no Expresso inclui sempre uma boa notícia. É difícil encontrar exemplos de sustentabilidade no país?

Pelo contrário. Há imensos projectos interessantes, mas não aparecem nos media, não têm visibilidade, e não estão inter-ligados. Na serra de Montemuro há uma empresa que produz um chá extraordinário e exporta-o para todo o mundo. Em Odemira há uma escola que ganhou vários prémios ambientais a nível internacional. A agricultura biológica também é um caso de sucesso e é um mercado em expansão, apesar da total falta de apoio oficial, ao contrário do que acontece noutros países. O sector dos resíduos e das energias renováveis – sobretudo a solar, a eólica e a geotérmica – são exemplos a seguir. E houve um investimento sério na investigação científica, o que inclui a área ambiental.

 

Se fosse Ministra do Ambiente quais seriam as suas prioridades?

É muito importante transversalizar o Ambiente a outros ministérios, como prevê a Estratégia Nacional de Desenvolvimento Sustentável. Não se pode tratar o problema da mobilidade sem o contributo do Ministério das Finanças e do Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações.

A par disso, elegeria cinco temas fundamentais que mobilizassem a opinião pública. Um deles seria a devolução dos rios às populações. Este é um aspecto fundamental da sustentabilidade. Tecnicamente é possível e há fundos comunitários para fazê-lo. As autoridades inglesas até receberam um prémio por limpar o Tamisa, que era um rio nojento. Em Copenhaga e Estocolmo já se toma banho e bebe-se água em rios que estavam poluídos com metais pesados. Por que não fazemos o mesmo em Portugal? Por falta de vontade política e de envolvimento e participação das populações. Depois, investiria na multiplicação da iniciativa Limpar Portugal, que foi muito mobilizadora e teve impacto imediato. A degradação do espaço público e a maneira como as pessoas se sentem enxovalhadas por esse abandalhamento é tremenda para a vida cívica e para o bem-estar social. Em terceiro, empenhar-me-ia em assuntos constantemente adiados, como a alteração da Lei dos Solos e o novo cadastro do território. Quarto, daria mais importância às juntas de freguesia e às autarquias, que são as entidades políticas mais próximas das pessoas. Finalmente, envolveria os habitantes das áreas protegidas no planeamento da sua gestão. A maior parte destas zonas já vai na segunda geração de planos de ordenamento e voltou-se a cometer o erro de excluir as populações do processo de decisão.

 

Que balanço faz do Ano Internacional da Biodiversidade em Portugal?

O balanço é negativo. As efemérides são sempre importantes para chamar a atenção para determinados problemas. O assunto é debatido na opinião pública e há produção científica dirigida. Em Portugal fizeram-se alguns estudos, avançou-se em termos teóricos na matéria dos serviços ambientais e da valorização da biodiversidade. No entanto, e na prática, o que aconteceu às áreas protegidas é absolutamente deprimente. A última reforma – que criou cinco agrupamentos de acordo com a tipologia da área – foi absolutamente nefasta. A verdade é que estão mais desprotegidas do que há dois anos: têm menos técnicos no terreno, menos capacidade económica, menos visibilidade e estão mais degradadas.

 

Denuncia, critica e apresenta soluções para inúmeros problemas ambientais, mas muitos deles teimam em persistir. Sente-se frustrada? Como é que se mantém motivada para continuar a intervir?

Não me sinto frustrada. A sociologia do ambiente é uma matéria apaixonante. Quanto mais sabemos, mais queremos saber. E é uma área nova – ao contrário de sectores muito estruturados e pesados como a Saúde ou a Educação – na qual podemos agir e influenciar decisões. Por vezes são coisas pequenas, mas fazem-me sentir que algo está a mudar. Quando escrevo tento dar dimensão política e social aos problemas ambientais e não focar apenas questões técnicas. A sociologia mostra como o quarto se arruma, isto é, como as coisas funcionam e como estão ligadas umas às outras. Depois, através dos artigos no jornal, posso dar um pontapé na porta. E isso é bom porque às vezes consigo ajudar outros e crio sinergias para que as coisas se alterem. E isso é compensatório. Claro que a mudança social é das mais difíceis. Mas o modelo de desenvolvimento pode ser diferente. E estou optimista. Se calhar é por ter tendência a acordar bem-disposta.

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