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A CIDADE PRODÍGIO
A cidade prodígio
2011-03-01
A cidade prodígio

O brasileiro Jaime Lerner afirma que qualquer cidade do mundo pode ser significativamente melhorada em apenas três anos, e o dinheiro não é essencial para o fazer. 
Ele já provou que é possível.

 

Há quem diga que Jaime Lerner, 73 anos, está para o urbanismo como Steve Jobs – fundador da Apple – está para a tecnologia, isto é, muito à frente do seu tempo. Este arquitecto brasileiro notabilizou-se por tornar Curitiba, capital do Estado do Paraná, numa referência mundial da sustentabilidade. Tudo começou nos anos setenta, quando o termo “desenvolvimento sustentável” ainda não fora inventado.

Para Lerner um dos maiores pecados das cidades é a separação dos locais onde os habitantes trabalham, moram e se divertem. “Comparo as cidades a uma tartaruga. Ela é o melhor exemplo de qualidade de vida porque junta trabalho, abrigo e transporte”, justifica. No entanto, ele considera que o crescimento desordenado das urbes actuais não é motivo para desanimar. “A cidade não é o problema, mas a solução. Porque se tivermos uma visão generosa em relação à cidade, teremos também em relação à sua população”. Este sempre foi o propósito de Lerner: melhorar a qualidade de vida das pessoas. E foi o que fez, com coragem e atitude inovadora, sem desanimar perante a falta de verbas. “A criatividade começa quando cortamos um zero ao orçamento. Quando cortamos dois é ainda melhor”, argumentou numa conferência TED (iniciativa da Fundação Sapling com o objectivo de disseminar boas ideias), em 2007.

 

Novo paradigma

Jaime Lerner foi eleito Governador do Paraná em 1994. Mas foi nos três mandatos anteriores, como Prefeito de Curitiba, que surpreendeu o mundo ao reinventar o espaço urbano.

Em 1969, com apenas 28 anos, Lerner participou na criação do Instituto de Pesquisa e Planeamento Urbano de Curitiba, entidade responsável pelo desenvolvimento do plano director da cidade. Em 1971 foi eleito para a Prefeitura e começou a pôr o plano em prática. Entre as directrizes estavam medidas que implicavam transformações físicas, culturais e económicas, como a alteração da rede de transportes, a criação de zonas verdes e áreas de reciclagem, e o projecto da Cidade Industrial de Curitiba (CIC), a 10 quilómetros do centro da cidade. Nessa altura Curitiba era uma cidade pouco industrializada, com cerca de 600 mil habitantes. Ao fim de três anos o índice de zona verde por habitante subiu consideravelmente; a CIC cresceu sem indústrias poluidoras e incorporou áreas de habitação e serviços; o antigo paiol de pólvora foi transformado em sala de teatro e outros edifícios abandonados foram revitalizados.

Lerner implementou outras medidas no seu primeiro mandato, mas a mais revolucionária foi a que criou um novo modelo de desenvolvimento urbano, sustentado na transformação da rede de transportes. Desde logo, a Prefeitura quis travar o crescimento do centro e desenvolver novos pólos urbanos que reduzissem a distância percorrida entre casa e trabalho. Uma das primeiras iniciativas – talvez a mais controversa – originou o primeiro “calçadão” do Brasil, corria o ano de 1972. Em apenas 72 horas Lerner fechou ao trânsito a Rua 15 de Novembro, uma das principais vias do centro da cidade. A rua era percorrida por muitos peões, mas fora recentemente ampliada para comportar mais carros. O fecho provocou receio nos comerciantes e levou o Automóvel Club a organizar uma marcha lenta de carros. O então prefeito de Curitiba antecipou-se ao protesto: cobriu o pavimento com papéis e chamou as crianças das escolas para neles desenhar.

A Prefeitura, com o objectivo de fomentar o uso do transporte público, implementou um sistema de três faixas de rodagem em vias que se estendiam do centro da cidade até à periferia. Uma faixa era exclusiva para autocarros, outra para trânsito local e outra ainda para deslocações de longa distância. Também foram criados terminais onde confluíam várias linhas de autocarros – o sistema ficou conhecido como Rede Integrada de Transportes Urbanos (RIT).

 

Mais com menos

Com a RIT Lerner provou que a criatividade é mais importante do que o investimento: “Dinheiro a mais atrapalha. É bom combustível, mas é muito importante encontrar uma equação de co-responsabilidade. Por exemplo, nós não tínhamos recursos para investir 300 milhões de dólares numa frota nova de transporte público em Curitiba. A equação de co-responsabilidade que montámos foi a seguinte: chamámos a iniciativa privada e dissemos que nós, poder público, investimos no itinerário – estações, paragens, terminais; e vocês investem na frota. E pagamos por quilómetro percorrido. Essa foi a equação que funcionou. Montou-se um sistema que paga-se a si mesmo, e não precisa de subsídios”, contou Lerner em entrevista à Gingko, em 2008.

No segundo mandato (1979-83) Lerner apostou na componente social e na qualidade de vida dos habitantes: criou as primeiras 20 creches da cidade; construiu 13 postos de saúde; ampliou a rede de saneamento básico; inseriu pequenos núcleos de habitação social na malha urbana já existente, beneficiando cerca de 25 mil famílias; e aumentou a área verde da cidade – o novo Parque do Iguaçu, com 8 km2, passou a ser o maior parque urbano do Brasil.

Neste período o grande avanço no sistema de transportes foi a criação de uma tarifa única, com acesso a todas as linhas. Também foram introduzidos autocarros articulados, com capacidade para 160 passageiros, as linhas circulares inter-bairros e uma linha especial para estudantes, que ligava o centro da cidade às principais universidades.

 

Lixo por comida

No terceiro mandato (1989-93) o Perfeito de Curitiba deparou-se com o problema da acumulação de lixo nos bairros mais pobres da cidade, onde as ruas estreitas não permitiam a passagem de camiões. Solução? Lerner criou um programa em que os moradores destas localidades podiam trocar sacos de lixo por sacos cheios de compras, material escolar ou bilhetes para transportes públicos. Os bairros ficaram significativamente mais limpos. O programa, premiado pela ONU em 1990, serviu de ponto de partida para uma campanha de sensibilização ambiental que alertava para a necessidade de separar o lixo. Resultado: cerca de 70% das famílias passaram a fazê-lo.

Se ainda tiver fôlego saiba que Lerner introduziu outras medidas para melhorar a qualidade de vida dos curitibanos: alojou 30 mil famílias carenciadas; construiu 30 Centros de Educação Integral, que acolhiam os alunos durante o horário escolar; transformou autocarros antigos em pequenas escolas profissionais itinerantes; criou Unidades de Saúde abertas 24 horas por dia; requalificou duas pedreiras abandonadas e transformou-as num teatro com 2.500 lugares; etc. Em 1996 Jaime Lerner recebeu o Prémio Criança e Paz, atribuído pela Unicef, em reconhecimento dos programas “Da Rua Para a escola”, “Protegendo a Vida” e “Universidade do Professor”.

A aposta numa rede de transportes eficaz prosseguiu com a introdução de dois novos modelos de autocarros – o Ligeirinho, com capacidade para 40 passageiros, e o Bi-articulado, com capacidade para 230 passageiros –, e o novo sistema de paragens elevadas – as famosas estações “tubo” – que funcionam como plataforma de metropolitano, agilizando assim as entradas e saídas dos autocarros.

Hoje Curitiba tem uma área metropolitana com 3,2 milhões de pessoas e é uma referência mundial de sustentabilidade. O índice de área verde por habitante subiu de 0,5m2, em 1970, para os actuais 55 m2 (valor três vezes superior ao recomendado pelas Nações Unidas). Os seus dez modelos de autocarros transportam 2,3 milhões de passageiros por dia. Mais de 80 cidades em todo o mundo (Bogotá, Cidade do México, Seul, etc.) aplicaram os fundamentos da RIT nas suas redes de transporte.

 

Balada da sustentabilidade

 

Como Governador do Paraná (1994-98 e 1998-2002), Lerner manteve a postura e visão que o caracterizaram enquanto Perfeito de Curitiba. Por exemplo, foi neste período que iniciou o programa Baía Limpa. “Queríamos limpar as nossas baías. O Rio de Janeiro tinha conseguido 800 milhões de dólares do Banco Mundial, porém concluímos que o fundamental não era a obra, mas sim a consciência. E limpámos as baías através de um acordo muito simples com os pescadores: see pescavam peixe, pertencia-lhes; se pescavam lixo, nós comprávamos. Então, se o dia não estava bom para a pesca, eles pescavam lixo. Quanto mais lixo retiravam da baía, mais limpa ficava, e, por sua vez, mais peixe havia”, recontou Lerner.

Em 2002 abandonou a política. Nesse ano foi eleito presidente da União Internacional de Arquitectos, com um mandato de três anos, tarefa que conciliou com o cargo de professor na Universidade do Paraná e na Universidade da Califórnia, Estados Unidos. Actualmente trabalha como arquitecto e conselheiro das Nações Unidas para assuntos de urbanismo, e desdobra-se em conferências por todo o mundo, para mostrar que é possível melhorar as cidades onde vivemos. E até compôs a Música da Sustentabilidade, com seis mandamentos para um futuro melhor, que, com a boa disposição que o caracteriza, entoa com a ajuda do público nas palestras: “É possível. É possível. Você é capaz. Use menos o carro; faça esta transição e emita menos CO2. Viva mais perto do trabalho. Economize energia em casa. Separe o lixo; o orgânico do não-orgânico. Economize mais. Desperdice menos. Por favor, faça-o agora”. 

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