Logo Sociedade Ponto Verde

SOLIDARIEDADE, O INGREDIENTE SECRETO
Solidariedade, o ingrediente secreto
2013-11-26
Solidariedade, o ingrediente secreto

Uma mão cheia de vontade de fazer, criatividade e resiliência q.b. resultaram em três projectos sociais que, sem a pretensão de acabarem com a fome, minimizam-na. 
Conheça a receita do Zero Desperdício, do reFood e da Cozinha com Alma.

 

Em 2008 António Costa Pereira pôs na ordem do dia uma questão que, de tão simples, era bem complexa: e se aproveitássemos as sobras intocadas de restaurantes, refeitórios, serviços de catering? Impossível, a lei não permitia, disseram-lhe várias vezes.“Numa primeira fase, chamemos-lhe de alerta, escrevi às autoridades, ao Governo, ao Presidente da República, aos deputados, à comunicação social. A minha proposta era no sentido de alterar ou adaptar a lei. Só que as respostas foram quase nulas e as que tive foram inconsequentes”, recorda o piloto da companhia aérea TAP.

Determinado, procurou nova solução e lançou uma petição online contra o desperdício alimentar. Divulgou-a entre amigos, conhecidos e na página de Facebook que criou para o efeito. Foi notícia nos media e convidado a participar no Prós e Contras na RTP. Dias antes do programa teve uma reunião na Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) e o que era um dilema deixou de o ser: a lei estava a ser mal interpretada. Pragmático, António Costa Pereira pensou: “Não vale a pena pensar no passado; vamos pensar para a frente”. No programa televisivo partilhou essa boa nova, depois recebeu imensos telefonemas e pensou que alguém daria forma a um projecto que canalizasse as sobras de refeições para quem delas precisava. Mas não. Com uma profissão exigente e muitas horas passadas a voar, acabou por ser mesmo ele a preparar uma receita solidária. Porém, não estava sozinho.

 

Pronto para a acção

“Havia muito gente que me escrevia através do Facebook, fui lá fazer uma depuração entre quem falava e quem realmente era capaz de fazer. Juntámo-nos nove e fundámos uma associação, a DariAcordar”. Missão? “Acabar com o desperdício no sentido lato”, diz. O projecto Zero Desperdício centra-se na questão alimentar. Esclarecida a questão legal, trabalharam durante meses com a ASAE e uma empresa de segurança alimentar privada, criando checklists para recuperar refeições quentes ou frias, em cenários tão variados como refeitórios de empresas, restaurantes, eventos, hospitais, hotéis… Segunda etapa: angariar parceiros. Com o apoio da ASAE realizaram uma sessão de esclarecimento com potenciais parceiros para mostrar o projecto. Foi assinado um protocolo com a Jerónimo Martins, hoje acompanhada por tantos outros como grupo Auchan, Celeiro, Brio, Rtiz Four Seasons, Assembleia da República…

“Ok, já é legal, temos parceiros, e agora como é que vamos fazer a distribuição dos alimentos?”, interrogou-se. Toda a gente dizia-lhe que para tal necessitaria de dinheiro. Mas não é esse o mote da DariAcordar: “Somos uma associação contra o desperdício, a nossa concepção é não desperdiçar o que já existe”. Dito e feito. Então procuraram potenciar as redes já existentes, com o apoio das autarquias, primeiro Loures e depois Lisboa, às quais já se juntaram Sintra e Cascais. As autarquias indicam as famílias que carecem de ajuda e quais as instituições no terreno que estão a fazê-lo. A DariAcordar, através do Zero Desperdício, funciona como facilitadora, fazendo a ligação entre os parceiros com refeições para doar e as instituições que apoiam quem precisa. “Já temos resultados concretos. Ao final de um ano – começou em Abril do ano passado – mais de meio milhão de refeições foram recuperadas e sem dinheiro envolvido”, congratula-se António Costa Pereira. Uma iniciativa com o apoio institucional do Banco de Portugal e da Casa da Moeda, além do Alto-Patrocínio do Presidente da República.

 

Colegas de luta

Sem saber do movimento que o piloto da TAP iniciara, e sem ter visto o Prós e Contras, o norte-americano Hunter Halder, a viver em Portugal há mais de duas décadas, teve uma ideia semelhante. “Começou com uma mudança de carreira”, assume, após 18 anos dedicado à área de team building. “Passei um ano a pensar, a ler, a fazer jejum. Fiz um levantamento do impacto da vida do Hunter no planeta Terra. Fiz algumas coisas boas, mas em termos de impacto na humanidade, praticamente zero. E percebi também que não tinha muito mais tempo no planeta”. Sempre com muitas ideias em carteira, analisou cinco projectos humanitários que tinha delineado, mas acabou por dedicar-se a outro que surgiu após um jantar de família num restaurante. “Uma das minhas filhas perguntou o que é que acontece ao resto da salada ao fim da noite. E eu respondo: ‘Acho que vai para o lixo. Sim, é uma vergonha filha. E é só início da vergonha porque não é só a salada, mas toda a comida preparada que não vai ser vendida hoje. Não é só este restaurante, são todos os restaurantes em Lisboa e no mundo. O tamanho desta vergonha não é pequeno”. Semanas depois a filha começou a trabalhar num hotel e a indignação subiu de nível. “Menos de 24 horas depois tinha o projecto desenhado e entreguei para avaliação do meu filho, que é mais pés na terra”, recorda Hunter. Assim nasceu o Re-Food, projecto com três objectivos: acabar com o desperdício de alimentos preparados, acabar com a fome e construir solidariedade comunitária. O que só pode ser verdadeiramente atingido a nível micro local, afirma o mentor desta iniciativa. A essa escala “é mesmo possível ir a todos os restaurantes, padarias, pastelarias; é verdadeiramente possível entregar comida às pessoas e envolver a comunidade, instituições públicas, privadas,…”.  

Para implementar o Re-Food, Hunter identificou três problemas que teria de resolver primeiro: “Atitude do Governo, atitude da restauração e atitude da ASAE”. Foi então que um vizinho o informou do trabalho de António Costa Pereira. “Ele bateu os três gigantes. Mandei-lhe um e-mail e já falámos muitas vezes. Somos colegas de luta”, descreve.

 

Rua a rua, porta a porta

Embora tenham o mesmo propósito e ambos resgatem as sobras intocadas das refeições, Zero Desperdício e Re-Food têm formas de actuação distintas. Quando soube que era possível dar vida à sua ideia, Hunter fez “o levantamento de todas as potenciais sobras em Nossa Senhora de Fátima”, zona de Lisboa onde reside. “Passei nas ruas, tirei fotografias. Na altura (há mais de dois anos) eram 285 potenciais fontes de sobras, entre pastelarias, padarias, cafés, restaurantes, refeitórios…”, enumera. Depois estudou a forma de chegar a esses espaços. “Percebi que não tinha hipótese. Corto o número ao meio e não é possível; corto outra vez ao meio e ainda não é possível. Acabei com sete quarteirões entre a Av. Duque de Ávila e a Av. de Berna, a Fundação Calouste Gulbenkian e a Av. Marquês de Tomar, onde encontrei 45 potenciais fontes de sobras”, recorda. Dessas, 30 aceitaram colaborar. “Com sorte metade são pastelarias, fecham entre as 18:30 e 20:30, e metade são restaurantes, que fecham entre as 21:30 e 23:30. Tenho dois turnos, um ao fim do dia e outro ao fim da noite, com tempo entre eles para distribuição”, explica. A bordo de uma bicicleta decorada com “uns cestos malucos”, começou a fazer as recolhas que entregava na igreja. Numa lógica de proximidade e para chegar às pessoas daquela zona de Lisboa que precisam de ajuda, falou com dezenas de moradores e deixou papéis em todos os prédios. Hoje as refeições são distribuídas em dois horários à porta da Re-Food. Aos poucos, mais pessoas juntaram-se à causa. “Passados seis meses eram 70 voluntários, no primeiro ano cento e tal, agora só em Nossa Senhora de Fátima temos 300 voluntários, outros 100 em Telheiras e alguns 200 nos núcleos Re-Food que vão abrir. No total, temos 600 pessoas envolvidas e 400 a fazer activamente o trabalho diário”, enumera. E bastam duas horas por semana para participar nas operações básicas do Re-Food: recolha, embalamento e distribuição.

 

Negócio social

Também Cristina de Botton e Joana Castella decidiram contribuir para a resolução de um problema que cresceu com a crise que assolou o país: a fome, sobretudo daqueles que nunca passaram necessidades nem procuraram ajuda. Se a ideia inicial do projecto passava por reaproveitar o chamado desperdício alimentar, aos poucos ganhou novos contornos, dando origem a um negócio social. Cozinha com Alma é um espaço de comida take-away, aberto a pessoas com carências económicas e ao público em geral, simultaneamente cliente e parceiro deste negócio. Como? O lucro das vendas reverte para completar o valor das refeições apoiadas, explica Cristina de Botton. Hoje são preparadas 350 refeições diariamente e já foi atingida a meta definida aquando do lançamento desta acção: 100 refeições sociais por dia.

O projecto começou a ganhar forma em finais de 2010 e após um ano a maturar o conceito e a delinear a melhor estratégia, a loja, ainda que provisória, abriu em Fevereiro de 2012 num espaço disponibilizado pela autarquia de Cascais. A cozinha pertence à creche da Pampilheira, da Santa Casa da Misericórdia. “Temos um acordo: exploramos a cozinha, é tudo cozinhado e embalado lá, e em contrapartida cozinhamos para as crianças e para o pessoal da creche”, explica Cristina. A loja definitiva abriu meses depois. Há sempre opções frescas e congeladas, preocupação das mentoras desde o início “para que as famílias apoiadas não tivessem de ir todos os dias à loja. As deslocações também são caras e assim permite às famílias irem uma vez por semana abastecer-se e não terem de ir diariamente”. A selecção das famílias beneficiadas é feita pela Comissão Social de Freguesia da respectiva área de residência. Depois de Cascais, o âmbito foi alargado a Alcabideche e Estoril. Para que não haja tratamento diferenciado entre público em geral e beneficiados, criaram um cartão carregável Cozinha com Alma. Os clientes convencionais podem pagar com o cartão Cozinha com Alma, dinheiro ou multibanco, enquanto os detentores de bolsa apenas com o cartão Cozinha com Alma. “Quando um cliente chega à loja a nossa pergunta é: ‘Tem cartão Cozinha com Alma?’ Ao dizer que sim a pessoa pode ou não ter bolsa”. As famílias apoiadas têm um plafond máximo mensal. “Se não arriçávamo-nos a que a pessoa fosse carregando, carregando, comprava refeições a 50 cêntimos e ia vendê-las ao vizinho a 2 euros. O rendimento per capita define o escalão a que pertence a família: consoante o escalão e o número de elementos do agregado familiar é calculado o plafond: uma família de 4 pessoas do escalão X, tantos dias por mês, são tantas refeições”, explica Cristina de Botton. Além disso, e numa lógica de responsabilização de quem beneficia deste apoio – válido por seis meses, renovável por igual período – a família paga sempre um valor residual pela refeição. “Por uma questão de compromisso, por uma questão de dignidade”.

 

Um passo em frente

Zero Desperdício, reFood e Cozinha com Alma ainda só deram os primeiros passos. A vontade de fazer parte da solução leva-os a querer ir mais além. Por isso o movimento impulsionado por António Costa Pereira, que já recebe 1.500 refeições diariamente e entregou desde o início 600 mil, fechou recentemente um acordo com um parceiro que dará nova escala ao movimento. “Vamos trabalhar com uma grande instituição que tem a capilaridade de estar no país todo. É aproveitar o que já existe: tem recursos humanos, materiais, é a sua missão de norte a sul do país”, explica. E aposta na figura do mecenas municipal, que “ofereça, não dinheiro, mas as caixas isotérmicas para as associações no terreno”, reforçando os laços com a comunidade local.

Também o Re-Food está em expansão. Depois de Nossa Senhora de Fátima, espécie de laboratório para esta solução, e do núcleo de Telheiras, verdadeiro protótipo de como deve funcionar este modelo, até ao final do ano estarão a funcionar mais espaços: Lumiar, São Sebastião da Pedreira e Estrela. “Outros cinco – Parque das Nações, Olivais, Carnide, Belém e São Francisco de Xavier – vão aderir no início do ano e depois há mais 18 que vão abrir até ao final de 2014. E temos também um núcleo que vai abrir em Almada e outro em Alfragide”, diz Hunter Halder. Porque depois da primeira fase, a micro local, há que provar que funciona a nível urbano. “Entre Telheiras e Nossa Senhora de Fátima desenvolvemos um projecto em cerca de 2 km2. No último ano resgatámos e entregámos 100 mil refeições numa pequena parte da cidade. Isso significa que, se especularmos para toda a Lisboa, 84,8 Km2, estamos a falar de 5 a 7 milhões de refeições por ano que vão para aterro”. Mas os planos não ficam por aqui. Comprovado o modelo urbano será altura de alargar a todo o mundo, através de um modelo facilmente replicável.

Na Cozinha com Alma, a questão mais premente é, para já, encontrar uma nova cozinha para aumentar a capacidade de produção. Graças a parcerias com duas associações, a Agir Hoje e ASFAC – Associação de Instituições de Crédito Especializado, presta também apoio complementar às famílias beneficiadas, através de workshops variados e úteis: gestão do orçamento familiar, como estar numa entrevista, como fazer um currículo… Franchisar o conceito também faz parte dos planos, para assim levá-lo a outros pontos do país e está a ser estudada a melhor forma para fazê-lo. Boas ideias não têm fronteiras.

 

 

Zero Desperdício

A organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) está interessada em replicar o modelo Zero Desperdício noutros pontos do mundo.

www.zerodesperdicio.pt

info@dariacordar.org

 

Re-Food

Venceu em 2011 o Prémio de Voluntariado Jovem do Montepio Geral. 

www.re-food.org

Tel.: 912 442 000

 

Cozinha com Alma

A qualidade da comida é essencial para que os clientes convencionais regressem e apoiem o projecto. À criatividade do chef residente, Nuno Simões, juntam-se receitas de outros chefs que colaboram com este negócio social, como Chakall, Luís Baena… 

www.cozinhacomalma.com

Tel.: 210 938 834

DESCUBRA AINDA