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BIODIVERSIDADE
Biodiversidade
2015-05-14
Biodiversidade

O dia 16 de dezembro de 2014 ficará na memória de todos quantos assistiram à chegada de Katmandu e Jacarandá a Mértola. Ao correr rumo ao seu habitat natural, o primeiro casal de linces-ibéricos criados em cativeiro a serem libertados em Portugal transportou com ele a esperança de uma segunda oportunidade para a espécie de felino mais ameaçada no nosso país. Dez dias depois, outro casal de linces-ibéricos era notícia. Azahar e Gamma chegavam ao Jardim Zoológico para ocuparem as novas instalações, tornando-se protagonistas no processo de educação e de alerta de consciências.

 

Como ponto comum destes dois momentos encontramos o Centro Nacional de Reprodução do Lince Ibérico, em Silves, de onde saíram Jacarandá e Azahar, duas fêmeas. Esta última, aliás, foi uma das primeiras fêmeas do Programa Ibérico de Conservação ex situ (reprodução em cativeiro) e em 2009 teria honras de ser o primeiro animal a ocupar as instalações do CNRLI. E é precisamente nestas instalações que encontramos Rodrigo Serra, o responsável por este centro de reprodução, incluído num projeto internacional que conta com cinco centros de cria e com uma direção técnica e científica única, já assumida pelo CNRLI em 2013-2014.

 

É ele que nos explica que o programa de conservação ex situ tem como objetivos principais manter o máximo de diversidade genética existente na Natureza pelo maior período de tempo possível, como salvaguarda contra a extinção da espécie em estado selvagem, e a produção de animais adequados para municiar projetos de reintrodução na Península Ibérica. “Como tal, mantemos e produzimos linces para salvaguardar a espécie da extinção em toda a Península, em parceria com mais quatro centros de cria em Espanha, e produzimos linces-ibéricos aptos para projetos para reintrodução em toda a Península também. Independentemente de onde se reintroduzem, o objetivo é a recuperação da espécie por toda a Península, e não apenas em Portugal”, explica.

 

Sabendo-se que este foi um processo iniciado em 2009, há uma questão que o cidadão comum poderá colocar: quais as razões que obrigaram a esperar cinco anos até reintroduzir a espécie na Natureza? O responsável sublinha que não podemos nunca esquecer que os projetos de reintrodução levam tempo e dependem de uma quantidade de variáveis dificilmente controláveis, como, por exemplo, a disponibilidade de animais para reintroduzir. “Acima de tudo, é necessário garantir que as causas de mortalidade que levaram a espécie à extinção em determinados pontos da Península são minimizadas e que a reintrodução tem o apoio das populações locais e dos agentes que atuam no território que se propõe para estes projetos.

 

É necessário ter em conta que até junho de 2014 apenas existiam projetos de reintrodução na Andaluzia, comunidade autónoma de Espanha onde ainda se mantêm populações selvagens remanescentes e que avançou primeiro com duas novas zonas de reintrodução. Apenas a partir de junho de 2014, há cerca de seis meses, avançaram as comunidades autónomas de Extremadura e Castela-La Mancha, e Portugal. Não se pode falar de atraso no caso de Portugal, mas sim de calendários ibéricos e internacionais que Portugal tem feito por cumprir, dentro do projeto LIFE+ Iberlince, do qual o nosso país é parceiro”, completa.

 

Este regresso do lince-ibérico ao nosso território acaba por ser uma excelente ocasião para fazer um balanço da meia década de vida do Centro. Um balanço muito positivo, com uma curva de aprendizagem muito rápida, tanto para os animais que ali chegaram em 2009 e 2010 – todos inexperientes do ponto de vista da reprodução – como para os técnicos. “Tivemos um arranque difícil devido às expectativas geradas com o primeiro parto obtido apenas três meses após a abertura do Centro, mas perfeitamente natural, tendo em conta que apenas recebemos fêmeas inexperientes ou muito jovens, situação normal nos programas internacionais de reprodução em cativeiro. Em apenas cinco anos, e após receber 16 animais, produzimos já cerca de 60 linces, dos quais 26 foram já reintroduzidos na Natureza e mais oito animais aguardam a sua data de solta nos tempos mais próximos”, recorda Rodrigo. E o sucesso destes cinco anos de vida sai reforçado se olharmos para alguns resultados marcantes, caso do recorde de 21 crias produzidas numa só temporada de cria, em 2012, o recorde de 100% de sobrevivência em 17 crias nascidas em 2013, a primeira ninhada de cinco crias alguma vez registada em cativeiro, também em 2013, e, finalmente, o nascimento e solta da primeira fêmea reintroduzida em Portugal após décadas de ausência no país, em 2014.


Um novo ciclo


Esta reintrodução vem abrir um novo ciclo para a conservação da espécie em Portugal e também para o CNRLI: o da sua adaptação à nova realidade que vem com a existência de populações selvagens da espécie em território português e o da manutenção dos excelentes resultados obtidos até agora. E o Centro poderá também vir a ter uma palavra a dizer na recuperação de linces-ibéricos feridos no nosso país, um desafio duro e exigente, mas totalmente novo e aliciante. E este novo ciclo tem como palco o Vale do Guadiana, uma escolha que, à semelhança da seleção das zonas de reintrodução na Península Ibérica como um todo, obedece a regras e requisitos mínimos acordados entre todos os parceiros do programa LIFE+ Iberlince, um projeto internacional cofinanciado pela Comissão Europeia.

 

Estas regras e requisitos são então sancionados pela Comissão Europeia, sendo considerados todos os fatores relevantes – densidade de coelho-bravo, qualidade do habitat, área total, atitude social das populações, ameaças não naturais (estradas, etc.) e medidas para a sua redução, comunicação potencial com outras populações de lince-ibérico, entre outras. Depois dessa avaliação é definido um ranking de prioridades, que dita a escolha do primeiro local de solta em cada país/ comunidade autónoma. “O que pode representar este momento de expansão dos projetos de reintrodução é uma nova esperança, também fora da Andaluzia – a grande responsável pelo recuo no declínio da espécie – e em dois países, em vez de um apenas, como até aqui”, explica Rodrigo Serra. Uma lufada de ar fresco e um aumento líquido dos números totais da espécie no mundo e da área total que esta ocupa. “É um mundo novo, uma grande aventura, mas também uma imensa responsabilidade!” 

 

O sucesso depende de todos


Mas para que esta ação tenha sucesso é incontornável o envolvimento das comunidades locais. E para consegui-lo é fundamental que as populações sejam informadas sobre vários aspetos da reintrodução da espécie e que entendam que a espécie e a presença de projetos de conservação da mesma não irão representar uma limitação ou um peso às suas atividades, mas sim uma oportunidade de ouro e uma ferramenta de gestão ecológica e ambiental. “Podemos falar de benefícios ecológicos, ambientais – o papel do lince no ecossistema, como predador de topo, é regular uma quantidade apreciável dos processos que influenciam o habitat e a sua qualidade - , e de benefícios económicos, por exemplo através do aumento da densidade de presas, como o coelho-bravo e a perdiz, que o lince obtém ao regular a densidade dos predadores menores, como a raposa, através de perseguição direta. Isso trará benefícios para a atividade cinegética, mas também para todos, através da qualidade dos serviços que um ecossistema saudável e íntegro traz para todos – ar e água limpos”, defende o responsável pelo Centro. Importa igualmente recordar que o turismo de Natureza é uma atividade económica em crescimento e que a presença do lince-ibérico noutras regiões da Península Ibérica já se revela um motor socioeconómico relevante e uma oportunidade a não descurar. Não admira, por isso, que Rodrigo Serra defenda que, se o projeto de reintrodução da espécie em Portugal for conduzido com o envolvimento das populações locais, “criará emprego e oportunidades no interior do país, valorizando-o. E valorizando o lince-ibérico, uma espécie única, nossa e que representa valores emocionais e culturais absolutamente portugueses, responsabilidade nossa perante a Europa e perante o mundo”

 

Fundamental é, no entanto, não apagar da memória os motivos que terão estado na base da redução drástica do número de linces no seu habitat natural. Sabese hoje que a redução e pré-extinção das populações de lince-ibérico estão ligados a fatores naturais – epidemias que afetaram e afetam ainda as populações da sua presa principal, o coelho-bravo, por exemplo – e a fatores não naturais, que vão desde a alteração do uso do solo à destruição do habitat, à fragmentação da paisagem através da construção de infraestruturas, como estradas e barragens, e práticas agropecuárias intensivas, até à perseguição direta ou indireta através da prática de furtivismo, atropelamentos, entre outros fatores.

 

“Para evitar estes erros, é preciso minimizar o impacto destes fatores e não abandonar os esforços de conservação da espécie a médio e a longo prazo”, aponta Rodrigo. “A reabilitação das populações de lince-ibérico na Península Ibérica será um processo muito duro e longo e é preciso fôlego para melhorar as condições para a espécie e fazer evoluir as atitudes que temos perante a mesma. É um processo que terá de ser transversal a toda a sociedade portuguesa e espanhola.

 

”Neste processo, a inauguração das novas instalações do lince-ibérico no Jardim Zoológico de Lisboa revela-se um complemento muito importante no que toca à sensibilização. Azahar e Gamma são o casal de linces-ibéricos que procurarão inverter a máxima “longe da vista, longe do coração”. Rui Bernardino, veterinário do Zoo, conta-nos que a ambientação está a ser ótima, pese as diferenças de personalidade entre o macho e a fêmea. “O Gamma nasceu em cativeiro. É um animal que tem epilepsia e que está a ser medicado e que desde sempre teve contacto humano, portanto é natural que esteja habituado. A Azahar foi capturada na Natureza e, apesar de estar em cativeiro há nove anos, devido a um problema na coluna, mantém os seus instintos selvagens muito mais apurados, daí que se mostre mais furtiva.” Claro que isso não impede os visitantes de observarem os novos moradores do Zoológico, para os quais foi pensada uma instalação com espécies de vegetação que mimetizam o que o animal pode encontrar no estado selvagem e onde foram criadas plataformas a diversas alturas. Mas os pormenores vão mais além e está prevista que a instalação vá sofrendo alterações ao longo do tempo, de forma a que, tal como na Natureza, os animais se deparem com desafios diferentes.

 

Tudo isto fazendo parte de um projeto de conservação da espécie no qual o Zoo é parceiro do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas. “É um projeto muito especial”, afirma Rui Bernardino. “Normalmente, nós apoiamos projetos de conservação que decorrem do outro lado do mundo e com os quais os visitantes não têm grande hipótese de interferência direta. Neste caso, falamos de uma espécie diretamente ligada ao nosso país e cujo sucesso em muito vai depender do comportamento da população face a ela. Estamos a falar de uma espécie que, afinal, desapareceu da nossa fauna.

 

Agora que se iniciou a reintrodução da espécie no nosso território, é fundamental o papel educativo e de sensibilização das pessoas que o Jardim Zoológico desempenha.” O veterinário, que também já colaborou com o Centro Nacional de Reprodução do Lince Ibérico, considera mesmo que todas as pessoas deviam olhar para esta reintrodução como uma segunda oportunidade que a espécie está a dar-nos. Rodrigo Serra sublinha que “fomos nós que criámos esta segunda oportunidade! É fruto de um enorme trabalho, de um mar de gente, por anos a fio, e custou muito, mas mesmo muito, a criar. Esta oportunidade é de ouro. Não só temos uma responsabilidade grande perante o mundo – que diríamos nós da China se se extinguisse o panda-gigante? – como trabalhámos muito, portugueses, espanhóis e europeus, para dar ao lince e a nós próprios esta segunda oportunidade. Não a devemos perder – pode ser a última. Ficaremos irreversivelmente mais pobres se tal acontecer!”.

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